A interseção entre a diplomacia formal e a “diplomacia privada empresarial”

Arquivo indisponível

Aluno-pesquisador: 

Bruna Ayres Machado

Orientador: 

  • Professora Martina Spohr Gonçalves

Ano: 

2023

Escola: 

  • CPDOC - Escola de Ciências Sociais

este segundo ano de pesquisa sobre a exportação do modelo capitalista norte-americano, decidimos ampliar nosso espectro de análise, explorando os meandros da interferência empresarial na condução das políticas econômica e externa brasileira durante a ditadura empresarial-militar, instaurada em 1964. Após um ano de pesquisa (2021-2022), já havíamos explorado toda documentação obtida sobre International Executive Service Corps (IESC) no Rockefeller Archive Center, o que resultou na publicação de um artigo Contrarrevolução preventiva, “diplomacia privada empresarial” e expansão de capital: o caso do International Executive Service Corps (IESC), publicado na 

Revista Tempos Históricos (UNIOESTE). Diante da ausência de material disponível sobre a ONG em acervos nacionais e da impossibilidade financeira de acessar novamente fontes primárias internacionais, optamos redirecionar a pesquisa para as possibilidades que se apresentam nas instituições arquivísticas brasileiras, notadamente na casa que nos abriga: o Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil.

Essa mudança de rumo é resultado de um período de estudo da bibliografia recentemente produzida por pesquisadores das áreas de História, Relações Internacionais e Administração. Ao longo dos últimos anos, mais precisamente na última década, os estudos relacionados à participação do empresariado como protagonista no golpe de 1964 vêm ganhando fôlego. Fundada por René Dreifuss (2006) em seu livro seminal 1964: a conquista do Estado, a interpretação sobre participação do empresariado aliado ao protagonismo militar no golpe de 1964 permitiu o avanço do debate acerca do caráter do golpe e, consequentemente, da natureza do regime implementado a seguir.

O avanço deste campo foi viabilizado pela diversificação do uso de fontes de pesquisa, contribuindo temática e metodologicamente para a construção da interpretação de que o golpe teve caráter empresarial-militar. A exploração de acervos pessoais de empresários e instituições ligadas ao empresariado, a obtenção de informações governamentais através da Lei de Acesso à Informação, bem como uma nova perspectiva diante de acervos de figuras públicas já conhecidos, permitiu uma maior compreensão da influência do grande capital nacional e internacional no golpe de 1964 e na condução da política governamental durante o regime militar. Sendo esse um campo de pesquisa recente, ainda há muito a ser explorado.

Nesse sentido, decidimos redirecionar nosso estudo para além da influência do IESC no modo de gerenciamento da empresas dos países em desenvolvimento na década de 1960. Optamos por olhar de que forma o empresariado nacional e estadunidense interagiu com a diplomacia de Estado para influenciar os rumos da política em seu favor. A principal pesquisa que contribuiu para o redirecionamento do nosso olhar foi tese de doutorado de Rejane Hoeveller, denominada (Neo)liberalismo, democracia e "diplomacia empresarial": a história do Council of the Americas (1965-2019).

Ao explorar os principais figuras políticas, empresariais e intelectuais envolvidas no Council of The Americas (COA), sua matriz ideológica e sua interferência na derrubada de governos no Brasil e no Chile, Hoeveller defende que tais atores operavam como uma “diplomacia privada empresarial”. Fosse através de propaganda ideológica para as grandes massas ou de estreita colaboração juntos aos órgãos de Estado, a COA agiu como operador privado fundamental da política externa americana. Diante dessa perspectiva de atuação de grupos privados, decidimos voltar os olhos para dentro e tentar compreender como isso se deu em nosso território.

Após uma breve exploração de possibilidades, percebemos que o próprio acervo do CPDOC apresentava um grande potencial aguardando por ser explorado. Em 2018, o diplomata aposentado João Clemente Baena Soares doou seu vasto acervo acumulado desde os anos iniciais de sua carreira no Itamaraty. Ele demonstrou interesse em conceder o fundo após conhecer mais profundamente o trabalho da instituição em 2004, quando contribuiu para o nosso projeto de memória da política externa e diplomacia brasileira, através de seu depoimento publicado no livro Sem medo da diplomacia (Editora FGV, 2006).

Dono de uma biografia que denota intensa atividade profissional, Baena Soares não ficou restrito somente à atuação dentro do Itamaraty ou em postos de diplomacia em outros países. Tendo se formado no Instituto Rio Branco em 1953, o diplomata ocupou os primeiros cargos em embaixadas no Paraguai, Portugal e Guatemala. Depois de quase uma década, ele voltou ao Brasil em 1962, em um momento em que a política interna estava conturbada, ao mesmo tempo em que o país fortalecia os pressupostos de política externa independente, com Afonso Arinos como chanceler. Nesse período, Baena Soares chefiou a recém-criada Divisão da África para fortalecimento das relações com os países do continente africano, que até então eram negligenciadas pelo Estado Brasileiro.

Após o golpe empresarial-militar de 1964, diante de decisões incautas do governo brasileiro, como o apoio à invasão americana à República Dominicana em 1965, o diplomata decidiu sair do país para ocupar postos na Itália, Bélgica e na missão brasileira na ONU. Em 1970, ele retornou ao Brasil, licenciado do Itamaraty, para ocupar um cargo na AERP, Assessoria Especial de Relações Públicas da Presidência da República, órgão criado com a missão de produzir campanhas de educação cívica, no âmbito interno, e de promover a imagem do Brasil internacionalmente. A partir de 1974, de volta ao Itamaraty, chefiou o Departamento de Organismos Internacionais e a Secretaria Especial de Assuntos Multilaterais, onde permaneceu até decidir se candidatar ao cargo de secretário-geral da OEA em 1983.

Sua candidatura foi fruto de uma mudança de postura do Itamaraty, que passou a estimular uma atuação mais presente do Brasil em órgãos internacionais. Baena Soares foi eleito para um mandato de cinco anos e depois reeleito por igual período, permanecendo na OEA até 1994. Nesses dez anos, o secretário-geral, que foi o único brasileiro a ocupar o cargo, enfrentou sucessivas crises políticas em países americanos, como o enfrentamento entre os sandinistas e os “contras”, apoiados pelos estadunidenses, na Nicarágua e a invasão norte-americana no Panamá. Além disso, atuou como articulador internacional para manutenção de instituições democráticas em El Salvador, Haiti, Peru e Guatemala. Depois de encerrada sua gestão à frente da OEA, Baena Soares trabalhou em uma comissão sobre direito internacional da ONU para analisar questões de paz e segurança durante a gestão de Kofi Annan.

Esse breve resumo da atuação de Baena Soares é suficiente para dar conta do potencial de seu acervo pessoal para a pesquisa histórica, sobre questões atinentes ao Brasil e ao continente americano. Desse modo, decidimos empreender no ano de 2023 uma exploração do material doado para ter a dimensão das possibilidade de pesquisa. A busca realizada algumas das mais de 100 caixas que compõem o fundo doado pelo diplomata demonstrou a recorrência de alguns temas e tipos de documentos. É possível dividir o acervo em dois grandes grupos: documentos referentes a sua atuação no Itamaraty ou no governo durante a ditadura empresarial-militar e documentos que dizem respeito a sua atuação à frente da OEA.

No bloco de documentos da atuação no Brasil, encontram-se documentos tanto de caráter político como econômico. Nesse último grupo, encontram-se, por exemplo, acordos comerciais com alguns países e estudos sobre comércio internacional para desenvolvimento nacional. Observa-se também a existência de documentos sobre pesquisa tecnológica das forças armadas, exploração de minérios, energia nuclear, contratos de risco para exploração de petróleo e posicionamento sobre legislação de direito ao mar.

No âmbito político, são recorrentes documentos sobre posicionamento do Brasil dentro grupo países não-alinhados durante a Guerra Fria e em relação ao processo de descolonização de países da África. Existe também considerável documentação sobre a posição do Brasil em relação a resoluções da ONU em diversos temas. Por fim, observa-se material sobre o plano de ação da AERP quanto à imagem internacional do Brasil.

Dentre os documentos da OEA, é possível perceber grande quantidade de correspondência entre os países-membros sobre a situação de instabilidade democrática de países como Guatemala, Haiti e Peru. O diplomata reuniu também muita documentação sobre os conflitos na Nicarágua e Panamá, demonstrando grande preocupação com a atuação norte-americana nesses casos. Além disso, existe vasta documentação sobre reforma da Carta da OEA, resoluções que visavam ampliar a atuação da Organização e estudos sobre o retorno de Cuba para a instituição.

Diante desse curto panorama, é possível verificar a pertinência da organização, preservação e divulgação do acervo de Baena Soares. É certo que o fundo muito tem a contribuir para o avanço da pesquisa histórica sobre a ditadura empresarial-militar brasileira, no que tange às perspectivas dos governos militares frente às relações políticas e econômicas do Brasil no âmbito internacional. Além disso, o acervo tem o potencial de trazer contribuições para a pesquisa sobre as crises políticas de países da América Central, com especial atenção para a interferência norte-americana, tema para o qual nosso campo de pesquisa é particularmente sensível.

Após esse período de exploração, decidimos que seria preciso captar recursos para higienização, organização e digitalização do acervo de Baena Soares. Além disso, entendemos ser necessário buscar ajuda financeira para empreender um novo avanço na pesquisa. Nesse sentido, elaboramos um novo projeto de pesquisa com o objetivo aprofundar a compreensão do papel desempenhado pelo empresariado nas relações exteriores entre Estados Unidos e Brasil durante o governo de Ernesto Geisel (1974-1979), no contexto da ditadura empresarial-militar brasileira.

O foco principal é examinar as relações entre a "diplomacia privada empresarial" e a diplomacia formal, destacando como essas interações influenciaram e promoveram os interesses das empresas privadas de capital nacional e de capital estrangeiro por meio das estruturas estatais formais e das organizações da sociedade civil. O empresariado, especialmente o estrangeiro, desempenhou um papel fundamental no golpe empresarial-militar de 1964. Esse protagonismo se manteve ao longo do regime, permitindo que implementassem efetivamente seu projeto político em colaboração com os militares.

Nosso objetivo nessa pesquisa é entender como essa dinâmica se desenvolveu após o esgotamento do padrão de acumulação do pós-Segunda Guerra, com a crise multifatorial dos anos 1970 (PANITCH & GINDIN, 2012; MANDEL, 1990), mais precisamente durante o governo Ernesto Geisel (1974-1979). Como contraponto e contexto, incluiremos em nosso debate o posicionamento e o relacionamento da diplomacia formal, buscando tecer esta rede de integração transnacional que permitiu a construção de uma política externa favorável à expansão do capital privado, mesmo no contexto de crise. O acervo de Baena Soares será de grande utilidade para compreensão das questões levantadas pela pesquisa, pois no período de observação ele ocupou cargo na AERP/Presidência da República e no Departamento de Organismos Internacionais e na Secretaria Especial de Assuntos Multilaterais do Itamaraty.

Desse modo, fechamos esse segundo ano de pesquisa com a apresentação de projeto para captação de recurso junto a agências de fomentos como CNPQ e FAPERJ. Recentemente, fomos contempladas pelo edital Jovem Cientista Mulher da FAPERJ e estamos aguardando o resultado de outros editais. O endosso da agência estadual ao nosso projeto é de certa forma o reconhecimento de que esforços empreendidos nesse último ano para reestruturar a pesquisa valeram nossos esforços.